A melhoria do conhecimento fisiopatológico das anomalias fetais e o desenvolvimento de ferramentas terapêuticas permitiram, em alguns casos específicos, a terapia intraútero por fetoscopia. Apresentamos o estado da arte e os avanços recentes para a cirurgia fetal. Novas técnicas estão em desenvolvimento. Embora a morbidade materna associada à fetoscopia seja baixa, a ruptura prematura de membranas e o parto prematuro continuam sendo problemas importantes.
The improvement of pathophysiological knowledge of fetal anomalies and the development of therapeutic tools have allowed, in some specific cases, in utero therapy by fetoscopy. We present the state of art and recent advances for fetal surgery. New techniques are currently under development. Although maternal morbidity associated with fetoscopy is low, preterm rupture of membranes and preterm delivery remain as important problems.
Nas últimas décadas, a cirurgia minimamente invasiva tornou-se o padrão-ouro para o diagnóstico e o tratamento em muitos campos da medicina, não tendo sido diferente com a medicina fetal. Esses procedimentos endoscópicos transabdominais, guiados por ultrassonografia, são denominados de fetoscopia e permitem o acesso ao feto para indicações diagnósticas e terapêuticas
A primeira observação fetal direta foi realizada em 1954, por Westin, ao introduzir um endoscópio (panendoscópio de McCarthy) no útero de gestantes que seriam submetidas a abortamento terapêutico, entre 14 e 16 semanas de gestação1.
Somente na década de 1970 aconteceu o grande desenvolvimento da fetoscopia. Scrimgeour foi o primeiro a permitir que uma gestação continuasse após o exame fetoscópico. E Valenti o primeiro a obter amostra de sangue e pele fetais. Ambos os autores realizaram o procedimento após a exteriorização do útero por laparotomia2,3. Somente em 1974, com o desenvolvimento do
Inicialmente, somente as intercorrências fetais letais eram elegíveis para fetoscopia4. Com a evolução da cirurgia fetal e a comprovação de benefícios não só para salvar a vida do feto, mas, pelo menos, para evitar danos permanentes, outros procedimentos foram incorporados5. Esses benefícios podem ser obtidos tanto pela correção anatômica da malformação quanto pelo impedimento da progressão da doença, deixando a reparação definitiva para o período pós-natal. Assim, as indicações da cirurgia fetal passaram a incluir não só as condições letais, mas também as não letais, reduzindo a morbidade nos sobreviventes.
A cirurgia fetal envolve dilemas éticos únicos, pois, embora a mãe e o feto estejam intimamente interligados, os interesses podem conflitar. Questões controversas tais como: tipos de cirurgias permitidas, qual entidade decide sobre tal autorização, quais as cirurgias que devem ficar restritas a centros especializados, qual o nível de autoridade da mãe na decisão, quais as mães que se encontram aptas a decidir, quais as mães que precisam de maior proteção quanto à interferência de outros membros da família e qual o papel da equipe médica na orientação quanto à decisão, são apenas algumas delas6.
A introdução do ultrassom fetal de rotina e as melhorias técnicas nesses equipamentos aumentaram muito a nossa capacidade de diagnosticar anomalias fetais, como consequência, tornou-se possível também o desenvolvimento das técnicas de intervenção e cirurgia fetal. Somou-se a isso o aprimoramento das técnicas de anestesia e de cuidados intensivos neonatais6.
O número crescente de indicações para a terapia fetal e o aparente desejo dos pais de buscar esses procedimentos aumentaram a preocupação com as questões éticas relacionadas à terapia6.
À medida que a intervenção no feto passa a ser considerada para condições não letais, os problemas éticos se ampliam. Os benefícios ao embrião são sempre avaliados ante os riscos da técnica para ele próprio, em relação à prematuridade e à própria gestante. Bastante ênfase também tem sido dada à proteção das gestantes contra as pressões de outros familiares. O desejo da mãe tem sido cada vez mais respeitado principalmente após a revelação de algumas publicações na área de neurociências terem revelado que a interdependência entre mãe e bebê é maior do que podemos estimar7.
O maior envolvimento da sociedade nas decisões das questões éticas é bastante desejado. A comunidade é importante no apoio aos pais no direcionamento da decisão e na reflexão sobre quais são os padrões de qualidade de vida aceitáveis para uma determinada condição. Um deficiente físico será tanto melhor sucedido quanto maior for a aceitação da sociedade. Demais disso, a cirurgia fetal deve ser acessível a todas as classes. Uma vez que a sociedade custeie esse procedimento, é de vital importância estabelecer as prioridades entre a intervenção no feto e outras necessidades sociais8.
A dor e o estresse fetal se constituem como problemas distintos no que diz respeito à ética. Não se sabe se o feto sente dor, mas já é possível detectar a sua resposta ao estresse. Essas respostas causam alterações em curto e longo prazo no sistema nervoso central e podem afetar, no futuro, sua compreensão da dor. Reduzir a resposta ao estresse em crianças e adultos é sabidamente um benefício para o tratamento; e algumas evidências sugerem que essa verdade também seja válida para o feto. Entretanto, a dose adequada para a supressão da dor e/ou estresse e o melhor método para fazê-lo (opioides ou anestesia regional) permanecem desconhecidos. Prevenir e tratar a dor são direitos humanos básicos e independem da idade. As pesquisas para evolução na técnica cirúrgica precisam estar acompanhadas por outras que permitam maior compreensão da propiocepção fetal e da sua resposta ao estresse8.
Embora a terapia fetal possa ter um impacto enorme no tratamento pré-natal de alguns defeitos congênitos, por vezes a natureza invasiva desses procedimentos e a falta de dados suficientes sobre os resultados em longo prazo trazem incertezas de natureza médica e éticas6.
A grande justificativa que suporta a cirurgia fetal minimamente invasiva é a possibilidade de tratamento de condições letais ou com alta morbidade no feto quando nenhuma intervenção pós-natal efetiva existe. Algumas regras já estão bem estabelecidas para a indicação da cirurgia intraútero7. A terapia fetal deve atender aos seguintes critérios para ser eticamente permitida:
deve ser um procedimento para impedir o óbito fetal ou para prevenir ou mitigar substancialmente lesões graves ou irreversíveis para o concepto; a terapia proposta deve ter um baixo risco de mortalidade para o feto e risco baixo ou gerenciável de lesão grave ou sequela para o concepto; a taxa de mortalidade e morbidade materna deve ser muito baixa ou gerenciável.
Em qualquer tipo de terapia fetal devem ser considerados três conceitos éticos fundamentais8:
respeito pela autonomia da mulher grávida; respeito pelo feto como paciente; respeito pela consciência individual do médico.
A terapia fetal deve limitar-se ao tratamento de malformações graves e a condições potencialmente letais quando for comprovada sua eficácia para melhorar a sobrevivência e/ou preservar a função normal ou muito próxima do normal9.
As malformações do desenvolvimento e as condições fetais favoráveis à intervenção fetal podem ser categorizadas de forma útil em cinco grupos baseados em evidências10, descritos a seguir.
Síndrome de transfusão feto-fetal12
Conceito: nessa síndrome, ambos os fetos apresentam morfologia normal e a fisiopatologia da doença está relacionada a anastomoses vasculares entre as circulações desses fetos na placa corial. Alterações hemodinâmicas complexas produzem desequilíbrio entre as circulações fetais, levando à transfusão sanguínea de um dos fetos (doador) em direção ao outro (receptor). A síndrome de transfusão feto-fetal (STFF) é diagnosticada pela ultrassonografia por meio da identificação da sequência oligodramnia/polidramnia. A mortalidade perinatal associada a essa síndrome está em torno de 90% na ausência de tratamento. Tratamento: coagulação a laser dos vasos da placa corial para interromper as anastomoses responsáveis pelo processo de transfusão. A utilização dessa técnica resultará em “duas circulações placentárias distintas” no caso da sobrevivência de ambos os fetos, ou na “proteção” da exsanguinação do feto sobrevivente em caso de óbito de um deles. O critério de seleção para a cirurgia a laser é a idade gestacional inferior a 26 semanas, diagnóstico ultrassonográfico de monocorionicidade no primeiro trimestre, polidramnia no saco amniótico do receptor (maior bolsão vertical igual ou maior que 8 cm antes de 20 semanas, ou a 10 cm após essa idade gestacional) associado a oligoidramnia na bolsa do doador (maior bolsão vertical igual ou menor que 2 cm). Mielomeningocele13
Conceito: mielomeningocele (MMC) corresponde à protrusão da medula por meio de defeito aberto do tubo neural. As consequências para o feto estão relacionadas ao seu desenvolvimento e na maioria das vezes correspondem à herniação do cerebelo e à hidrocefalia decorrentes da anormalidade na dinâmica da produção do líquido cefalorraquidiano. Outras lesões estão também associadas a incapacidades sensitivas e motoras como a paralisia dos membros inferiores, disfunção de controle esfincteriano, de sensibilidade e sexual. Em alguns casos o cognitivo também pode ser afetado. A altura da lesão é um importante fator para determinar a gravidade da MMC. Casos mais leves com preservação do coeficiente de inteligência, da função motora e continência social podem estar relacionadas a isso. Um grande número de casos necessitará de derivação ventriculoperitoneal após o nascimento. Dados clínicos sugerem que o comprometimento neurológico progride durante a gravidez. Tratamento: a correção cirúrgica antenatal foi devidamente estudada para a cirurgia a céu aberto no estudo MOMS ( Obstrução do trato urinário inferior16
A obstrução do trato urinário inferior do feto (LUTO, do inglês Tratamento: a abordagem antenatal visa permitir a drenagem da bexiga fetal, seja por derivação vesico-amniótica, seja por ablação a laser da válvula de uretra posterior. A sobrevivência parece ser maior nos fetos nos quais a drenagem foi realizada, porém, os benefícios não podem ser comprovados de forma conclusiva. A chance dos bebês recém-nascidos sobreviverem com função renal normal é muito baixa, independentemente da cirurgia fetal16. Hérnia diafragmática congênita17. Conceito: de etiologia pouco conhecida, a incidência da hérnia diafragmática congênita (HDC) varia de 1/2.500 a 1/5.000 nascidos vivos. Oitenta e quatro por cento das lesões ocorrem do lado esquerdo do diafragma; 13%, do lado direito e 3% são bilaterais. Em aproximadamente metade dos casos são encontradas outras anomalias estruturais associadas, anomalias cromossômicas ou síndromes gênicas, sendo a taxa de mortalidade nesse grupo próxima a 100%. Considerando-se somente os casos com HDC isolada, as taxas de sobrevida neonatais variam de 60 a 70%. Essa alta mortalidade pode ser atribuída à hipoplasia e à hipertensão pulmonar, que são acompanhadas por imaturidade tecidual, bioquímica e estrutural do órgão. Tratamento: as possibilidades terapêuticas para os casos de HDC consistem em tratamentos pré, peri e pós-natais, sendo que a cirurgia pós-natal conta com uma sobrevida que varia de 50 a 92%. Com o objetivo de melhorar o prognóstico pós-natal para fetos portadores de HDC, a cirurgia fetal para oclusão traqueal, que tem como objetivo promover o crescimento pulmonar intraútero, consiste na instalação de um balão na traqueia do feto, por fetoscopia, procedimento que passou a ser chamado de FETO (do inglês:
Síndrome da banda amniótica Conceito: caracteriza um grupo de anomalias congênitas causadas por “bandas” do âmnio que aderem a estruturas fetais. As anomalias resultam de aderências ou constrições nas partes fetais acometidas: edema dos dedos das mãos e pés, amputação de membros e defeitos graves da face, coluna, cordão umbilical e paredes abdominal e torácica. Tratamento: só existe indicação de abordagem fetal quando a brida “estrangula” alguma extremidade fetal ou o cordão umbilical. Nesses casos, observa-se edema dos dedos das mãos ou dos pés, a isquemia progressiva pode levar à amputação de membro. A lise de banda amniótica por meio de fetoscopia na tentativa de impedir a amputação de um membro fetal é o tratamento a ser realizado. Corioangioma placentário Conceito: é um tumor geralmente benigno (hamartoma) originado dos vasos placentários. Os tumores grandes (acima de 4,0 a 5,0 cm) podem levar à polidramnia, anemia, insuficiência cardíaca, hidropisia fetal e ao crescimento intrauterino retardado. Tratamento: a intervenção fetal está indicada quando ocorrem sinais de insuficiência cardíaca congestiva no feto. O objetivo é fazer cessar o fluxo sanguíneo dentro do tumor por meio da coagulação dos vasos placentários que o irrigam pela fetoscopia. Teratoma sacrococcígeo Conceito: é um tumor originário de folhetos embrionários ou células germinativas que se localiza, na maior parte das vezes, na região sacral. Tratamento: a intervenção intrauterina está indicada nos casos de hidropsia fetal abaixo de 32 semanas. O principal objetivo é corrigir o estado de alto débito fetal, sendo que a principal alternativa é a oclusão dos vasos superficiais do tumor com laser por meio de fetoscopia. Obstrução congênita das vias aéreas superiores ( Conceito: a obstrução das vias aéreas superiores do feto pode levar à hidropisia fetal pela retenção do líquido habitualmente produzido pelo pulmão do feto. O aumento excessivo do volume pulmonar leva à eversão do diafragma e à compressão acentuada do mediastino culminando com o óbito fetal. Tratamento: a colocação de um Estenose aórtica progressiva Conceito: estenose da válvula aórtica, que pode evoluir para síndrome de hipoplasia do coração esquerdo (SHCE). Tratamento: a correção intraútero da estenose aórtica pode reverter a progressão da hipoplasia do ventrículo esquerdo. O mesmo princípio se pode aplicar à estenose pulmonar progressiva crítica com septo ventricular intacto, o que leva à hipoplasia do coração direito. O cateterismo cardíaco fetal guiado por ultrassom e a dilatação valvular, realizada por via percutânea, podem permitir a desobstrução no trato de saída dos ventrículos, impedindo a hipoplasia das câmaras cardíacas. Feto acárdico - sequência da perfusão arterial reversa no gemelar ( Essa condição representa uma variante da gemelidade unida. A circulação coriônica é compartilhada por meio de anastomoses arterioarteriais e venovenosas, frequentemente por meio de uma inserção comum dos cordões umbilicais, estabelecendo, então, uma relação parasitária entre um feto aparentemente normal (feto bomba) e uma massa acardíaca, que pode apresentar distintos graus de diferenciação tecidual. Tal arranjo vascular peculiar predispõe o feto bomba a um estado circulatório hiperdinâmico e consequente instalação progressiva de insuficiência cardíaca de alto débito, o que pode levar a óbito em 50 a 75% dos casos19. O manejo conservador desse quadro apresenta risco de óbito elevado do feto bomba, ao passo que a aplicação de técnicas de cirurgia fetal minimamente invasiva pode elevar a sobrevida para 80%, principalmente quando é realizado o diagnóstico no início da gestação, permitindo a intervenção precoce. Entretanto, deve-se atentar para a pequena quantidade de evidências cientificas acerca desse tópico e a natureza observacional de estudos conduzidos até este momento. O manejo adequado ainda não é consenso e até hoje não foram estabelecidos protocolos padronizados. Atualmente, a fetoscopia é o método de escolha para o acesso ao ambiente intrauterino e execução da técnica selecionada, buscando a interrupção do suprimento sanguíneo para o feto acárdico. A escolha do procedimento ideal e o momento da intervenção variam de acordo com a idade gestacional e o local onde será realizado o procedimento.
Sequência de policitemia da anemia no gemelar ( Conceito: forma de transfusão feto-fetal crônica, recentemente descrita, que se caracteriza por grandes diferenças da hemoglobina entre os gêmeos, sem sinais de STFF. TAPS pode ocorrer espontaneamente ou após a cirurgia a laser para STFF. A forma espontânea complica aproximadamente 3 a 5% das gestações gêmeas monocorônico, enquanto a forma pós-laser ocorre em 2 a 13%. A resolução automática da TAPS pré-natal é possível, provavelmente resultante da trombose espontânea da anastomose residual. Mais estudos (idealmente um estudo randomizado multicêntrico) são necessários para determinar a escolha do manejo ideal para TAPS. A abordagem fetoscópica com a coagulação dos vasos da placa corial parece ser a opção mais viável para os casos graves.
A cirurgia fetoscópica tornou-se uma realidade clínica em grandes unidades de medicina fetal selecionadas. Foram estabelecidas várias indicações para a cirurgia endóscica dentro do útero, e várias outras estão sob investigação. A cirurgia fetoscópica provou sua superioridade na cirurgia a laser dos vasos da placa corial, no tratamento pré-natal da HDC e está sendo entendida como uma evolução da cirurgia a céu-aberto nos casos de MMC. A natureza menos invasiva tornou essa intervenção mais aceitável para pais e clínicos. No entanto, algumas intervenções cirúrgicas fetais mais complexas permanecem impossíveis com equipamentos atuais. A fetoscopia é uma técnica invasiva, com consequências inerentes tais como a rotura prematura das membranas e o trabalho de parto prematuro.
Embora o diagnóstico e a terapia fetal criem oportunidades para o tratamento de fetos com defeitos congênitos, há uma série de fatores atenuantes que precisam ser considerados antes que as recomendações possam ser feitas, tais como a natureza heterogênea das malformações, a invasividade da intervenção cirúrgica proposta, as complicações potenciais associadas à terapia fetal e a escassez de dados sobre resultados em longo prazo21.
Qualquer transição da inovação para o padrão de cuidados na terapia fetal deve ser realizada de forma eticamente responsável e deve se basear em evidências científicas adequadas22.
Fonte de financiamento: nenhuma.
Autor correspondente: rsa@cpdt.com.br
Received: 15/05/2017
Accepted: 28/06/2017