A sífilis congênita é uma doença evitável. No entanto, um recente aumento de ocorrências foi observado no Brasil. Apresentamos um caso de sífilis congênita mostrando manifestações fetais. A gestante é particularmente vulnerável à exposição e maior é grande a chance de receber diagnóstico e tratamento inadequados.
Congenital syphilis is a preventable disease. However, an increase in occurrences has been recently observed in Brazil. We present a case of congenital syphilis showing fetal manifestations. Pregnant women are particularly vulnerable to exposure and greatly prone to inadequate diagnosis and treatment.
A sífilis é considerada uma doença pandêmica, que historicamente teve uma redução da sua prevalência na segunda metade do século XX devido ao êxito do emprego da penicilina como tratamento. Contudo, um aumento recente da sífilis tem sido observado no Brasil. Fatores relacionados a esse acréscimo são há muito relatados na literatura médica, podendo ser destacados, dentre outros:
ineficácia de campanhas educativas para o uso de proteção no ato sexual; automedicação, com tratamento inadequado; aumento da multiplicidade de parceiros; dificuldade de identificação e investigação dos parceiros; menor temor da população à exposição, frente aos avanços diagnósticos e terapêutico da sífilis e de outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs); ampla mobilidade de indivíduos, o que contribui sobremaneira para se espraiar a doença1.
Um conjunto de estratégias desenvolvidas por órgãos governamentais visam à captação precoce das gestantes para a rede pública de saúde (ou suplementar) de atenção pré-natal, ao diagnóstico precoce da doença e à aderência ao tratamento da grávida e de seu parceiro, bem como à monitorização de controle, cura e prevenção de outras DSTs. Tais estratégias são fundamentais para diminuir os potenciais desfechos obstétricos e perinatais adversos2. Isso chama atenção para a necessidade de se retomar medidas de rotina, bem estabelecidas, durante a realização dos cuidados pré-natais, que envolvem:
rastreamento de todas as gestantes com exames laboratoriais; tratamento com penicilina tanto das mulheres infectadas quanto de seus parceiros sexuais; monitorização e interpretação adequada da resposta ao tratamento medicamentoso.
A seguir, relatamos caso clínico de sífilis congênita que consideramos emblemático, não somente pelas manifestações fetais, mas também por se tratar de gestante particularmente vulnerável à exposição à doença e com grande chance de receber diagnóstico e tratamento inadequados3.
A.C.M.M, 15 anos, GI P0, 38 semanas, encaminhada à maternidade do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) para triagem do pré-natal por alteração de ultrassonografia (USG) externa realizada no dia anterior com a seguinte descrição: biometria fetal estimada (BFE) de 36/37 semanas, presença de grande quantidade de líquido no abdome fetal (ascite) e polidramnia severa. Apresentava ultrassonografia realizada com 27 semanas, sem alterações evidentes.
Realizava pré-natal na unidade básica de saúde (4 consultas), onde fez uma única rotina laboratorial com 27 semanas de idade gestacional. Resultados: tipagem sanguínea O, fator RH positivo, glicose 75, sorologia para rubéola, hepatite B, HIV negativo, VDRL 1/64. Nega tratamento prévio para sífilis.
A paciente foi admitida na maternidade do IFF/Fiocruz, assintomática, fundo uterino de 34 cm, ausência de metrossístoles, tônus uterino normal, movimentação fetal presente (MF), batimento cardiofetal (BCF) 144 bpm. Optou-se pela internação hospitalar para investigação e tratamento com penicilina benzatina, esquema de três doses com intervalo de uma semana entre cada uma. Houve insucesso em contatar parceiro para tratamento conjunto pelo Serviço de Vigilância Epidemiológica.
USG obstétrica com doppler que evidenciou BFE de 35 semanas e 3 dias, peso fetal estimado de 4.101 g, BCF 145 bpm, placenta posterior alta, grau II, com 58 mm de espessura, polidramnia importante ( Cardiotocografia (CTG): ondulatória e reativa VDRL: 1/16
No dia seguinte à internação, a paciente se manteve assintomática, sem alterações no exame físico realizado. Contudo, a CTG anteparto apresentou padrão comprimido. Foi indicada, então, a interrupção da gravidez por via alta devido ao diagnóstico de hidropisia fetal não imune e aumento da circunferência abdominal associada à CTG com padrão comprimido.
Cesariana sem intercorrência. Recém-nascido (RN) vivo, apgar 8/9, icterico 2/4+, adequado para a idade gestacional com hepatoesplenomegalia e hidrocele volumosa ao exame físico. Colhido VDRL sangue (1/32), e liquórico (aumento das proteínas, VDRL negativo). Iniciado penicilina cristalina por 10 dias.
Bilirrubina total: 8,5 (sem necessidade de fototerapia). Apresentou 4,6 em segunda titulagem. USG transfontanela: sistema ventricular de volume normal. USG abdominal: fígado com aumento do volume, ecotextura preservada e contornos regulares; baço com discreto aumento no seu volume, ecotextura homogênea. Observa-se mínima quantidade de líquido livre em cavidade peritoneal. Raio-X de ossos longos: normal. Fundo de olho: normal.
Durante internação, RN e puérpera apresentaram evolução satisfatória, recebendo alta hospitalar conjunta 14 dias após a internação. Realizaram acompanhamento no ambulatório de doença infectoparasitária até 8 meses de vida do RN.
Após dois exames consecutivos que apresentaram resultado negativo, o bebê foi considerado com crescimento e desenvolvimento normais e diagnosticado tratado da sífilis congênita.
A chegada de um caso de hidropisia fetal não imune a um serviço de medicina fetal remete o raciocínio clínico do fetólogo às mais diversas condições possíveis. A investigação materno-fetal nesses casos é classicamente norteada pelas causas elencadas nas publicações internacionais4 (
A notificação compulsória de sífilis congênita foi instituída em todo o território nacional a partir da Portaria nº 542, de 22 de dezembro de 1986; a de sífilis em gestante foi instituída pela Portaria nº 33, de 14 de julho de 2005; e a de sífilis adquirida, pela Portaria nº 2.472, de 31 de agosto de 2010 (
Apesar da ampliação da cobertura pré-natal nos últimos anos, com magnitude de 98,7% descrita no estudo Nascer no Brasil5, sua efetividade ainda é baixa no que se refere à sífilis congênita3. O acompanhamento pré-natal provido a essa paciente foi incapaz de identificar o caso precocemente, aconselhar e tratar a gestante e seu parceiro de maneira adequada e, consequentemente, evitar a transmissão vertical. A taxa de transmissão vertical de sífilis congênita no Brasil é estimada em 34,3% - com intervalo de confiança de 95% (IC95%) 24,7-45,46. O tratamento oportuno com penicilina da gestante acometida pode reduzir a sífilis congênita em 97% (IC95% 93-98)7. Um indicador de qualidade dos sistemas de saúde de um país, proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é a proporção nacional de mulheres grávidas infectadas com sífilis que recebem pelo menos uma dose de penicilina G benzatina até a vigésima quarta semana gestacional8. No caso em discussão, a gestante chegou a 38 semanas sem o devido tratamento, e seu filho já apresentava sintomas graves da doença, com derrames serosos, hepatoesplenomegalia e polidramnia.
Quando analisamos o caso por nós relatado com um olhar demográfico e socioeconômico, materializamos o arquétipo dos casos de sífilis congênita no Brasil: ocorreu com uma adolescente de 15 anos, parda, residente na baixada fluminense, em acompanhamento pré-natal na rede pública de saúde e com apenas uma rotina de exames laboratoriais. Domingues & Leal descrevem associação entre sífilis congênita e a menor escolaridade materna, cor da pele preta e parda, ao início mais tardio do pré-natal, menor número de consultas e menor realização de exames sorológicos6. Os mesmos autores descrevem um aumento em seis vezes da mortalidade fetal nos casos de sífilis congênita6, o que afortunadamente não aconteceu neste caso.
O presente relato exibe pouca exuberância no que tange ao ineditismo do seu curso clínico, às imagens observadas ou à terapêutica implementada, mas carrega a responsabilidade de pautar tema da saúde materno infantil tão importante no nosso meio. A sífilis congênita é um verdadeiro problema de saúde pública e atualmente tem sido potencializado pelas falhas no cuidado pré-natal e pela vulnerabilidade social das gestantes brasileiras.
Fonte de financiamento: nenhuma.
Autor correspondente: fernandomaiapeixotofilho@gmail.com
Received: 29/05/2017
Accepted: 30/06/2017