ARTIGO DE OPINIÃO
Considerações sobre a sepse obstétrica no bicentenário do nascimento de Ignaz Philipp Semmelweis

Considerations on obstetric sepsis in the bicentennial of the birth of Ignaz Philipp Semmelweis

Antônio Braga 1, Edward Araújo Junior 2, Renata Lopes 1, Vanessa Campos 1, Joffre Amim Junior 1, Jorge Rezende Filho 1, Carlos Antonio Barbosa Montenegro 1,

2019
Vol. 129 - Nº.01
Pag.11 – 13

Faz duas centúrias, em 1818, viu o Danúbio nascer em Buda (à época separada de Peste) um homem que viria a ser o anjo das paridas - Ignác Fülöp Semmelweis. Ao plasmar-se médico na Faculdade de Medicina de Viena, logo se aninhou no Serviço de Obstetrícia do Hospital Geral de Viena, o Allgemeines Krankenhaus der Stadt Wien. Nas inúmeras noites em claro, partejando as mulheres de Viena, viu Semmelweis inúmeras puérperas sucumbir ante a febre puerperal epidêmica. Essa peste era atribuída a influências cósmico-telúricas, terror apoplético diante da morte, ou mesmo miasmas venenosos que acometiam àquelas mulheres internadas na primeira clínica obstétrica - serviço do Professor Johann Klein.

Inconformado com tantas mortes, Semmelweis participava de todas as necropsias das sucumbidas. O que via era um grande flegmão pélvico, que ceifava a vida dessas mulheres jovens. Chamava a atenção que as parturientes da segunda clínica obstétrica, cuja assistência ficava a cargo das enfermeiras obstétricas, eram em geral cinco vezes menos acometidas por essa situação infame.

Quis o destino que, mesmo sem desvendar a teoria microbiológica das doenças, honraria que caberia a Pasteur, ou mesmo sem compreender os procedimentos de antissepsia que só floresceriam com Lister, Semmelweis conseguisse controlar exitosamente a febre puerperal em 1847 com a introdução da lavagem das mãos de todos os envolvidos na assistência obstétrica - aqui cabe salientar que as luvas cirúrgicas só seriam inventadas em 1890, a pedido de William Halsted ao seu amigo Goodyear, para proteger as mãos de sua amada instrumentadora cirúrgica, a enfermeira Carol Hampton.

Por inveja de seu chefe (ah!, sim: a inveja é atemporal) e de uma relação conflituosa com o mais importante médico do mundo à época - Rudolf Virchow - , quase meio século foi necessário para que as teorias de Semmelweis fossem definitivamente aceitas e a limpeza das mãos fosse enfim incorporada à prática médica.

A despeito de todo o avanço da medicina moderna, dos potentes antimicrobianos e de todo o aparato da medicina intensiva, observa-se um aumento da sepse em pacientes obstétricas. Para além disso, os graves quadros infecciosos que acometem nossas gestantes e puérperas representam uma das mais importantes causas de morbidade e mortalidade materna1.

É a sepse materna uma condição potencialmente ameaçadora à vida, caracterizada por uma disfunção multissistêmica resultante de infecção durante a gravidez, parto, pós-aborto ou período pós-parto, manifestada até 42 dias após a terminação da gravidez2. O diagnóstico precoce é fundamental para evitar a progressão dessa condição para o choque séptico e a morte materna. Ademais, as modificações fisiológicas no organismo materno, notadamente em seus aspectos imunológicos e mecânicos, tornam a paciente obstétrica mais susceptível às complicações infecciosas do que as mulheres não grávidas, fazendo com que a atenção a essa população deva ser reforçada. Vale citar que a hiperdinamia cardíaca, a taquicardia, a diminuição pulmonar da reserva de oxigênio, a hipercoagulabilidade, a leucocitose, a perda sanguínea após o parto, entre outros, podem postergar o precoce reconhecimento da sepse, agravando o quadro clínico e o prognóstico materno3,4.

Diante da enorme repercussão da sepse como causa de mortalidade, o American College of Chest Physicians e a Society of Critical Care Medicine uniformizaram o conceito de sepse em 1992, salientando que se tratava de uma síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) deflagrada por um agente infeccioso5. Essa definição, que mesmo na população adulta era pouco específica, não se aplica à população obstétrica, com suas invulgares modificações do organismo materno.

Para tentar aumentar a especificidade dos critérios diagnósticos de sepse, a Society of Critical Care Medicine, a European Society of Intensive Care Medicine, o American College of Chest Physicians, a American Thoracic Society e a Surgical Infection Society reviram em 2001 os critérios para diagnóstico da sepse, ampliando o painel de variáveis clínicas, inflamatórias, hemodinâmicas, incluindo as disfunções orgânicas e de perfusão tecidual6. Todavia, os critérios diagnósticos apresentados não apenas tornaram o diagnóstico da sepse confuso, como também demorado. A verdade é que a sepse, como inúmeras outras síndromes, não cursa com um teste diagnóstico padrão-ouro.

A fim de melhorar os critérios diagnósticos para a sepse, uma força-tarefa capitaneada pelo European Society of Intensive Care Medicine e pela Society of Critical Care Medicine, utilizando revisões sistemáticas que analisaram o impacto dos diversos elementos clínicos e laboratoriais no diagnóstico da sepse, apresentaram em 2016 o Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3)7. Esse consenso, de 2016, trouxe inovações importantes que devem ser salientadas:

  • SIRS deixava de ser um conceito importante, por conta de seus elementos clínicos e laboratoriais pouco específicos;

  • a classificação de sepse grave não mais existiria, uma vez que a sepse per se já era grave o suficiente e não precisaria de uma categoria de maior gravidade;

  • o choque séptico deixava de ser considerado nos casos de sepse em que houvesse hipotensão mesmo após a hidratação, passando a ser definido como a sepse em que o lactato estivesse >2 mmol/L (ou 18 mg/dL) e que fosse necessário o uso de drogas vasoativas para manter a pressão arterial média ([pressão arterial sistólica + 2 x pressão arterial diastólica] / 3)>65 mmHg.

    Em 2018, o Surviving Sepsis Campaign inovou o fluxo de cuidados a ser prestados para os casos de sepse, reforçando sua mensagem de que a sepse seja tratada como uma emergência médica8. A grande novidade no Surviving Sepsis Campaign 2018 é que o conjunto de medidas a serem tomadas diante de um paciente com sepse, que antes contemplava um período de 3 horas para diagnóstico, seguido por 6 horas de tratamento inicial, foi doravante concentrado em 1 hora, da entrada da paciente no serviço de saúde, para que o diagnóstico de sepse seja feito e o tratamento iniciado.

    Nessa primeira hora de abordagem do paciente com suspeita de sepse, segundo o Surviving Sepsis Campaign 2018, as seguintes condutas devem ser tomadas:

  • medir o nível de lactato sérico. Níveis elevados de lactato refletem hipóxia tecidual e glicólise anaeróbia, notadamente se >2 mmol/L (≈18 mg/dL). Nesses casos, o lactato sérico deve ser reavaliado dentro de 2-4 horas a fim de monitorar a melhora laboratorial e orientar o ajuste terapêutico;

  • obter culturas sanguíneas antes da administração de antibióticos. Uma vez que o início do tratamento com antimicrobianos apropriados não deve ser retardado para obter as culturas sanguíneas, a agilidade da equipe na obtenção dessas culturas é fundamental. Culturas sanguíneas apropriadas incluem no mínimo dois conjuntos (aeróbica e anaeróbica);

  • administrar antibióticos de largo espectro. O emprego de antimicrobianos intravenosos deve cobrir todos os patógenos prováveis. O antibiótico empírico deve ser adequado ao patógeno identificado e a sensibilidade estabelecida, ou descontinuado se houver a decisão de que a paciente não tem infecção. Estudos mostram que há atraso no reconhecimento da sepse obstétrica em mais de 70% das vezes, com repercussão no obituário materno9,10. Quando o antibiótico é iniciado na primeira hora após instalada a hipotensão, a taxa de sobrevida é de 80%, caindo para 70% quando o antibiótico é introduzido entre 1-2 h da hipotensão, 42% nos casos em que o antibiótico é iniciado apenas entre 5-6 h da hipotensão, reduzindo para 25% quando esse atraso se estende para 9-12 h do início da hipotensão11;

  • promover ressuscitação volêmica. A infusão líquida é crucial para a estabilização da hipoperfusão tecidual induzida pela sepse ou pelo choque séptico. Em virtude da natureza urgente dessa emergência médica, a reanimação inicial com líquido deve começar imediatamente, uma vez que se reconhece que a paciente tem sepse e/ou hipotensão e lactato elevado e completada dentro de 3 horas do seu reconhecimento. O aporte líquido contempla ao menos a infusão de 30 mL/kg de líquido cistaloide intravenoso. Há que se monitorar a resposta cardiopulmonar a esse tratamento, pois a paciente obstétrica está mais sujeita a edema agudo de pulmão, pela maior permeabilidade capilar. Indicam boa resposta clínica ao tratamento pressão venosa central entre 8-12 mmHg e saturação venosa de oxigênio acima de 70%;

  • utilizar vasopressores. A restauração urgente da pressão de perfusão aos órgãos vitais é um quesito-chave da reanimação dos pacientes com sepse. Os vasopressores não devem ser retardados nos casos de choque séptico, quando a pressão arterial média permanecer <65 mmHg, mesmo após 1 hora do início da ressuscitação volêmica. O vasopressor de escolha é a norepinefrina, e o melhor parâmetro para sua efetividade é a frequência cardíaca fetal, que bem reflete a boa perfusão placentária.

    Diante de um cenário em que a morbimortalidade maternal por sepse aumenta em todo o mundo e ainda representa enorme desafio na assistência obstétrica brasileira, é fundamental que se difundam algoritmos de rápida abordagem das pacientes obstétricas com sepse.

  • supported-by

    Fonte de financiamento: nenhuma.

    Conflict of interests

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    Affiliation

    1 Faculdade de Medicina, Programa de Pós-graduação em Saúde Perinatal, Maternidade Escola, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
    2 Programa de Pós-graduação em Obstetrícia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo - São Paulo (SP), Brasil.

    REFERENCES

    1. Pacheco LD, Saade GR, Hankins GD. Severe sepsis during pregnancy. Clin Obstet Gynecol. 2014;57(4):827-34.
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    3. Bauer ME, Bauer ST, Rajala B, MacEachern MP, Polley LS, Childers D, et al. Maternal physiologic parameters in relationship to systemic inflammatory response syndrome criteria: a systematic review and metaanalysis. Obstet Gynecol. 2014;124(3):535-41.
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    5. Bone RC, Balk RA, Cerra FB, Dellinger RP, Fein AM, Knaus WA, et al. Definitions for sepsis and organ failure and guidelines for the use of innovative therapies in sepsis. The ACCP/SCCM Consensus Conference Committee. American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine. Chest. 1992;101(6):1644-55.
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    7. Seymour CW, Liu VX, Iwashyna TJ, Brunkhorst FM, Rea TD, Scherag A, et al. Assessment of Clinical Criteria for Sepsis: For the Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):762-74.
    8. Levy MM, Evans LE, Rhodes A. The Surviving Sepsis Campaign Bundle: 2018 update. Intensive Care Med. 2018;44(6):925-8.
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    11. Kumar A, Roberts D, Wood KE, Light B, Parrillo JE, Sharma S, et al. Duration of hypotension before initiation of effective antimicrobial therapy is the critical determinant of survival in human septic shock. Crit Care Med. 2006;34(6):1589-96.

    Address for correspondence:


    Autor correspondente: antonio.braga@ufrj.br

    History

    Received: 15/03/2019

    Accepted: 21/05/2019

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